quarta-feira, 19 de outubro de 2011

"Pensar é estar doente dos olhos"

"Dá-me a tua mão desconhecida, que a vida está me doendo, e não sei como falar - a realidade é delicada demais, só a realidade é delicada, minha irrealidade e minha imaginação são mais pesadas."

Que a Clarice Lispector tinha uma alma sensível, todo mundo que já a leu, sabe. E esse jeito dela ver a vida me deixa cada vez mais encantada! A cada livro, a cada trecho que eu leio, me sinto em outro patamar de compreensão! Gosto de como ela descreve o nosso universo. Gosto como ela traduz coisas que ás vezes são tão difíceis... Da sua tentativa de compreender ao mesmo tempo que quer se entregar a uma não-compreensão. Acho que, no fundo, todos queremos isso!

Eu falo falo falo e vou falar sempre sobre a leveza! E a Clarice fala muito mais! A tal leveza que, quando alcançada, desmorona. Justamente por ser insustentável... Mas por que a leveza é inconstante assim? Será que não a suportamos? Será que preferimos o peso? Quando tudo está indo bem já pensamos "quando a esmola é demais, o santo desconfia!". E desconfiamos o tempo todo quando algo está bom! Não acreditamos ser possível, então começamos a nos questionar, a colocar empecilhos, os traumas vêm, a memória não nos deixa em paz, questionamos sobre a entrega, sobre o futuro, sobre o que vamos sofrer, no que aquilo vai dar e aí já se foi a tal leveza... Aí já não podemos mais vivê-la, senti-la, porque colocamos peso sobre ela! Parafraseando algo que li hoje, talvez o peso seja senão a leveza que adoeceu gravemente.

E como esse assunto tem sido objeto de reflexão nas últimas semanas, resolvi reler um texto da Clarice que li há muito tempo, e acho que já falei tudo sobre ele! Se chama "Por não estarem distraídos". Acho que é justamente a distração que nos deixa leve... Quando o pensamento, que quer raciocinar tudo (condicionado que ele é), interfere, acaba com qualquer sentimento que possamos ter! Queremos entender tudo o tempo todo! E isso estraga uma grande parte da nossa vida...

Sentimentos não são passíveis de explicação. Podemos recorrer ao por quê de sentirmos assim ou assado e acredito que tenham algumas respostas. Mas isso não faz a menor diferença, porque não podemos mudar o que nos levou a sentir assim, assado ou não sentir. Se torna espontâneo... Intrínseco. Temos que aprender a conviver da melhor forma com o que sentimos!

O que nos resta é não ter medo da desorganização e não tentar organizar tudo! Não dar forma pro que se sente, pro que se vive... Deixas as coisas acontecerem sem a nossa bendita mania de catalogar, rotular!

"Entregar-me ao que não entendo será pôr-me à beira do nada. Será ir apenas indo, e como uma cega perdida num campo. Essa coisa sobrenatural que é viver. O viver que eu havia domesticado para torná-lo familiar. Essa coisa corajosa que será entregar-me, e que é como dar a mão à mão mal-assombrada do Deus, e entrar por essa coisa sem forma que é um paraíso."

Talvez o paraíso esteja aí, quando nos entregamos ao infinito, sem querer delimitar, dar forma.

Por não estarem distraídos

Havia a levíssima embriaguez de andarem juntos, a alegria como quando se sente a garganta um pouco seca e se vê que por admiração se estava de boca entreaberta: eles respiravam de antemão o ar que estava à frente, e ter esta sede era a própria água deles.

Andavam por ruas e ruas falando e rindo, falavam e riam para dar matéria peso à levíssima embriaguez que era a alegria da sede deles. Por causa de carros e pessoas, às vezes eles se tocavam, e ao toque – a sede é a graça, mas as águas são uma beleza de escuras – e ao toque brilhava o brilho da água deles, a boca ficando um pouco mais seca de admiração.

Como eles admiravam estarem juntos! Até que tudo se transformou em não. Tudo se transformou em não quando eles quiseram essa mesma alegria deles. Então a grande dança dos erros. O cerimonial das palavras desacertadas. Ele procurava e não via, ela não via que ele não vira, ela que, estava ali, no entanto.

No entanto ele que estava ali. Tudo errou, e havia a grande poeira das ruas, e quanto mais erravam, mais com aspereza queriam, sem um sorriso. Tudo só porque tinham prestado atenção, só porque não estavam bastante distraídos. Só porque, de súbito exigentes e duros, quiseram ter o que já tinham. Tudo porque quiseram dar um nome; porque quiseram ser, eles que eram.

Foram então aprender que, não se estando distraído, o telefone não toca, e é preciso sair de casa para que a carta chegue, e quando o telefone finalmente toca, o deserto da espera já cortou os fios.

Tudo, tudo por não estarem mais distraídos.

domingo, 16 de outubro de 2011

Por um empréstimo da realidade exterior do Mundo

O que é pra ser dito? O que é pra ser falado? O que é pra ser pensado? O que vale a pena? O que vale ser sentido? O que vale ser considerado?

A palavra é uma tentativa, uma alternativa, não a solução. Não o que organiza. Ela dá margem...

E as atitudes? Me parece que as atitudes não são algo que reflete o que temos dentro. O externo está a anos luz de distância do que qualquer coisa que se passe dentro!

( Eu quero dizer agora o oposto do que eu disse antes )

E o que tem dentro? Não tem palavra, não tem gesto, não tem atitude que traduza, que externe... Impraticável! O que temos dentro é impraticável! Fica pra gente... E se alguém quiser saber, que chegue e invada e transcorra. Isso só acontece em raros casos de extremo interesse na alma alheia.

E a alma? A alma não é o que pensamos ter dentro, a alma é inatingível... A alma está lá querendo ser alcançada por nós, mas há tantos empecilhos... Tantas dores, tantos traumas, neuroses... Na filosofia oriental eles dizem que temos a paz e a felicidade dentro de nós, basta tirar toda a sujeira que nos impede de vê-las. E me parece que no Oriente que podemos encontrar o equilíbrio pra vida no Ocidente. Vida caótica, corrida, competitiva. Enfim!

Perguntas são o caminho... Percepção de nós mesmos e do ambiente a nossa volta, também. Caminho pra onde? Para qualquer coisa de paz dentro da gente. Para haver menos cobrança, menos conflitos, menos necessidades, mais aceitação (não resignação), compreensão... Do que somos, por que somos, pra que somos... Para sermos independentes e livres.

Para não precisar, para não querer, não projetar, não ansiar, não ter expectativa.

E nem quero encontrar essa paz, quero que a paz venha. Que ela surja dentro de mim. Não quero esforço, quero a espontaneidade. Quero estar consciente do meu condicionamento, do meio em que vivo, das minhas circunstâncias. E entender o por quê d'eu sentir, pensar, agir.

E talvez assim esse vazio suma. Essa necessidade da satisfação a qualquer custo. Esse sofrimento por não ter o que quer. Esse martírio de querer o tempo todo alguma coisa que não temos.

" Emancipate yourselves from mental slavery, none but ourselves can free our minds. "

Ser Real quer Dizer não Estar Dentro de Mim

Seja o que for que esteja no centro do Mundo,
Deu-me o mundo exterior por exemplo de Realidade,
E quando digo "isto é real", mesmo de um sentimento,
Vejo-o sem querer em um espaço qualquer exterior,
Vejo-o com uma visão qualquer fora e alheio a mim.

Ser real quer dizer não estar dentro de mim.
Da minha pessoa de dentro não tenho noção de realidade.
Sei que o mundo existe, mas não sei se existo.
Estou mais certo da existência da minha casa branca
Do que da existência interior do dono da casa branca.
Creio mais no meu corpo do que na minha alma,
Porque o meu corpo apresenta-se no meio da realidade.
Podendo ser visto por outros,
Podendo tocar em outros,
Podendo sentar-se e estar de pé,
Mas a minha alma só pode ser definida por termos de fora.
Existe para mim — nos momentos em que julgo que efetivamente
existe —

Por um empréstimo da realidade exterior do Mundo

Se a alma é mais real
Que o mundo exterior como tu, filósofos, dizes,
Para que é que o mundo exterior me foi dado como tipo da realidade"

Se é mais certo eu sentir
Do que existir a cousa que sinto —
Para que sinto
E para que surge essa cousa independentemente de mim
Sem precisar de mim para existir,
E eu sempre ligado a mim-próprio, sempre pessoal e intransmissível?
Para que me movo com os outros
Em um mundo em que nos entendemos e onde coincidimos
Se por acaso esse mundo é o erro e eu é que estou certo?
Se o Mundo é um erro, é um erro de toda a gente.
E cada um de nós é o erro de cada um de nós apenas.
Cousa por cousa, o Mundo é mais certo.

Mas por que me interrogo, senão porque estou doente?
Nos dias certos; nos dias exteriores da minha vida,
Nos meus dias de perfeita lucidez natural,
Sinto sem sentir que sinto,
Vejo sem saber que vejo,
E nunca o Universo é tão real como então,
Nunca o Universo está (não é perto ou longe de mim.
Mas) tão sublimemente não-meu.

Quando digo "é evidente", quero acaso dizer "só eu é que o vejo"?
Quando digo "é verdade", quero acaso dizer "é minha opinião"?
Quando digo "ali está", quero acaso dizer "não está ali"?
E se isto é assim na vida, por que será diferente na filosofia?
Vivemos antes de filosofar, existimos antes de o sabermos,
E o primeiro fato merece ao menos a precedência e o culto.

Sim, antes de sermos interior somos exterior.
Por isso somos exterior essencialmente.

Dizes, filósofo doente, filósofo enfim, que isto é materialismo.
Mas isto como pode ser materialismo, se materialismo é uma filosofia,
Se uma filosofia seria, pelo menos sendo minha, uma filosofia minha,
E isto nem sequer é meu, nem sequer sou eu?

Alberto Caeiro

sábado, 1 de outubro de 2011

Organizar a desorganização

Estava num tormento há dias, com poucas pessoas pra compartilhar, pra que a ouvissem, ou que pudessem dizer algo, mostrar um ponto de vista diferente, pontuar algo novo, enfim, tirá-la daquele rodeio de mesmas idéias. Mas 'mesmas idéias' era o que ela pensava que era, quando esquecia o quanto as idéias tinham amadurecido, o quanto havia mudado, aprendido. O quanto cada dia revelava uma parte desconhecida, ou desconstruia uma outra, como se estivesse em construção, ou fazendo uma reforma.

Só percebia toda essa mudança quando parava pra pensar em como e por quê aquilo havia começado. Em como um mês ou uma semana ou um dia e dependendo, até uma hora parecia todo o tempo do mundo! As horas viravam dias, que por sua vez se transformavam em semanas, que parecia um mês! Inversamente proporcional... Só aí percebia sua mudança, sentia as idéias borbulhando, progredindo numa velocidade luz ou regredindo, quando o que ela tinha não a sustentava e precisava reformular tudo de novo. Mas esse ir e vir de idéias e sensações diferentes é que era o barato! Uma confusão, zona geral, nada no lugar; tinha um gosto de mudança! Mas tinha hora que cansava. E sentia que precisava de uma faxina interior.

Das coisas velhas, algumas jogaria fora, outras arrumaria e colocaria no lugar. Coisas inúteis, todas pro lixo! Não tinham muitas coisas novas, senão a reoganização do que já tinha. Só que tinham coisas que ela não sabia o que fazer. Não sabia se valia a pena manter ou se livrar. Eram daquelas coisas que não se usa nunca, mas que temos a esperança de usar um dia. Tinha um quê de apego. Coisas que estavam ali há tanto tempo, que acabara se habituando com a presença. Sabia que não servia, mas não sabia se suportaria ficar sem elas. E essa parte da organização era a mais difícil.

Mas intuia que aquilo de fato não serveria, que eram só coisas que alguém deu e ela achou bonito. Percebeu que tinha se acostumado com a presença e a idéia de que poderia usar aquilo um dia. Percebeu que talvez esse dia não fosse chegar. Aceitava isso, mas não era tão simples jogar tudo fora de uma hora pra outra! Como poderia ser? É como se fizesse parte dela.

Mas queria começar a colocar em prática o desapego, queria renovar o espaço, arejá-lo e sentia que enquanto não decidisse o que fazer com as tais-coisas-de-mil-anos-atrás, não poderia deixar tudo do jeito que gostaria. E como gostaria?

Primeiro de tudo, só ter o que fosse realmente útil, aplicável. Queria ter um espaço que se aproximasse mais da realidade da sua vida naquele momento. Queria espaço pra que coisas novas pudessem entrar. Pra poder receber visitas num lugar agradável. Queria aquela sensação de paz que trás um lugar limpo, organizado e harmonioso. Queria um espaço límpido onde desse pra ver tudo com mais clareza. Queria o aconchego de onde se habita... Pra no final se sentir orgulhosa por ter conseguido deixar aquela zona do jeito que queria desde o início...

(continua... ou não)